‘Geração Z não está em negação sobre celular. Eles não dizem que é bom, mas sentem-se presos’, diz autor de ‘Geração Ansiosa’

Em entrevista à BBC, o autor do livro ‘Geração Ansiosa’, Jonathan Haidt, detalha os efeitos do telefone celular e das redes sociais sobre a infância atual e o que pode ser feito para livrar as crianças do uso excessivo de telas.
Para Jonathan Haidt, as crianças ‘foram sugadas para se tornarem apenas consumidores de conteúdo e isso é tudo o que elas fazem’
BBC
Katty Kay (BBC): Seu livro foi publicado há um ano e causou imensas discussões.Os pais precisam de ajuda. Sei disso por experiência própria.
É muito difícil tirar os filhos da frente das telas, se todos os seus amigos estão grudados nas telas deles. É uma dependência que exige ações coletivas.
Desde que conversei com Jonathan Haidt, o autor do livro A Geração Ansiosa: Como a Infância Hiperconectada Está Causando uma Epidemia de Transtornos Mentais (Ed. Cia. das Letras, 2024), não consigo tirar da cabeça uma frase que ele me disse durante a entrevista.
“Não conheço um membro da Geração Z que esteja em negação, que diga ‘Não, nós adoramos os celulares, os celulares são bons para nós'”, contou Haidt. “Todos eles veem o que está acontecendo, mas se sentem aprisionados.”
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Será que alguma coisa realmente mudou no último ano, desde a publicação do livro de Haidt? Todo o alvoroço que surgiu sobre os telefones celulares terá sido apenas um momento passageiro de ansiedade parental coletiva ou aquilo realmente trouxe o tipo de ação que muitos pais esperavam?
Assim que foi publicado, A Geração Ansiosa despertou uma avaliação global do uso do telefone celular entre as crianças. Conversei com o autor para saber se ele ainda é da opinião de que o excesso de tempo em frente às telas está colocando a infância em risco.
Confira abaixo a entrevista, editada para maior concisão e clareza.
Katty Kay (BBC): Seu livro foi publicado há um ano e causou imensas discussões.
Eu gostaria de começar pedindo uma espécie de resumo sobre onde estamos sobre os diversos aspectos do que você está tentando fazer: telefones celulares nas escolas, classificação etária, redes sociais, como fazer para que as crianças tenham mais tempo livre para se divertirem.
O que está indo bem e o que não está, em relação a todas estas questões, nos Estados Unidos?
Jonathan Haidt: Eu sabia que o livro seria popular. Mas eu não me havia preparado para que esta questão se espalhasse como fogo na mata por todo o mundo, não apenas nos Estados Unidos.
Em todo o planeta, a vida familiar se transformou em uma luta sobre o tempo em frente às telas. Todo mundo odeia. Todo mundo vê isso.
O que decolou mais rapidamente foram as escolas livres de celulares, porque é algo que pode ser feito com muita facilidade.
É difícil ensinar em uma sala de aula quando metade dos alunos estão assistindo a vídeos curtos e jogando videogames. Por isso, os professores odiaram os celulares desde o princípio, mas ficaram com medo, especialmente nos Estados Unidos.
Talvez seja o mesmo no Reino Unido, mas, nos Estados Unidos, existem muitos pais que querem poder se comunicar todo o tempo com seu filho. Eles acham que têm o direito de verificar como seus filhos estão.
“E se algo der errado? Preciso estar presente.” Daí, vem o excesso de cuidado…
Kay: Existe, então, um paradoxo, porque você tem os pais que são superpreocupados com os celulares. Eles observam o que os celulares fazem com seus filhos, mas não querem que seus filhos abandonem seus celulares quando vão para a escola.
Haidt: Veja, as pessoas são complicadas! Existem multidões dentro delas.
Eu não deveria dizer que todos observaram o problema porque existem muitos pais que acreditam que o celular é uma corda de segurança.
Eles veem o mundo como um lugar muito perigoso e ameaçador. Por isso, logo no início deste processo, achei que haveria essa questão muito americana da superproteção, pois realmente temos muito mais criminalidade do que a Europa ou o Canadá.
Mas o que me surpreendeu, depois de estudar esta questão por um longo período, é que a superproteção se disseminou e varreu todos os países de língua inglesa nos anos 1990.
Por isso, todos os países de língua inglesa passaram por isso ao mesmo tempo. E, agora, todos eles estão tomando medidas com muita rapidez.
Eu diria que o Reino Unido e a Austrália estão na liderança, em termos de realmente aprovar legislação a este respeito.
Kay: Aqui nos Estados Unidos, observamos algumas batalhas no Congresso, mas nada aconteceu em nível nacional. O que vejo são Estados individuais promulgando leis para impedir que as crianças tenham celulares nas escolas.
Haidt: É verdade, já que não temos legislaturas operantes nos Estados Unidos.
Nós temos o Congresso. E o Congresso, na verdade, não pode fazer nada se alguém questionar.
Por isso, desde o princípio, não considerei que conseguiríamos um mínimo que fosse de ajuda do Congresso. Eu me concentrei nos 50 Estados americanos, no Reino Unido, Austrália e União Europeia.
Se conseguirmos mudanças legislativas nestas regiões, será uma vitória.
Kay: É cedo demais para vermos qual foi o impacto nas escolas que proibiram os telefones celulares? Temos algum dado sobre isso ou apenas supomos que elas terão melhores resultados?
Haidt: Temos relatos de escolas que passaram a ser livres de celulares. E eu desafio as pessoas a procurarem uma escola que realmente seja livre de celulares e não apenas durante o horário das aulas.
Se for apenas uma restrição durante o horário das aulas, a escola não é livre de celulares.
Isso causa todo tipo de problemas. Todas as crianças ficam no celular entre uma aula e outra.
Mas, entre as escolas realmente livres de celulares, onde você entrega o telefone pela manhã e o recebe de volta à noite, os relatos são muito positivos.
O comentário mais comum é que os problemas de disciplina diminuem. Há muito menos brigas, muito menos drama. O absenteísmo é baixo.
A escola é muito mais divertida quando você consegue realmente conversar com seus amigos, brincar e rir com eles. Por isso, o absenteísmo diminui, os atrasos também e as crianças chegam no horário.
Mas o mais estimulante para mim é que a maioria diz que voltamos a ouvir risos nos corredores.
Por isso, todos os relatos são muito positivos. Muitas vezes, existe resistência na primeira semana ou quinzena, mas o que a maioria deles diz que termina por aí.
Kay: De onde vem a resistência?
Haidt: Algumas das crianças não gostam e alguns pais não gostam.
Mas conversei com centenas e centenas de diretores de escolas. O que eles me dizem é que esperavam forte resistência dos pais, o que, na verdade, não aconteceu.
Porque este ano é diferente. O zeitgeist [o espírito da época] mudou. Na verdade, tudo começou no Reino Unido, antes mesmo de sair meu livro.
Você tinha escolas livres de smartphones. Elas viralizaram em fevereiro do ano passado e meu livro só foi publicado em março. Agora, o ambiente é outro e as escolas estão prontas para agir.
Existem estudos acadêmicos que foram ambíguos. Mas, quando você os examina… Houve um que saiu no Reino Unido e foi publicado na revista The Lancet.
Ele dizia que as escolas livres de celulares não ajudam. Não, não é verdade.
O estudo examinou cerca de oito escolas que tinham uma política de mochilas, o que não é muito bom, e 11 ou 15 escolas que tinham uma política de proibição em sala de aula.
Parecia que havia uma leve diferença de políticas. Mas são escolas muito diferentes.
Temos uma postagem na plataforma Substack demonstrando que este estudo da The Lancet não mostra nada deste tipo.
Houve um estudo no Reino Unido realizado pelo think tank [centro de pesquisa e debates] Policy Exchange, que examinou várias centenas de escolas britânicas. E apenas cerca de 10% delas são realmente livres de celulares.
Se você observar as escolas do Reino Unido que são realmente livres de celulares e compará-las com as demais, irá encontrar benefícios acadêmicos e comportamentais.
Kay: Quero voltar para algo que você disse no começo, sobre os anos 1990 e como aquela se tornou uma época de medo.
Sou mãe que trabalha a vida inteira. Tenho quatro filhos – dois deles nasceram nos anos 1990, um em 2000 e outro, em 2006. Por isso, cada um deles teve experiências diferentes com as telas.
Mas, pelas pesquisas que realizei, algo mais aconteceu entre os anos 1980 e 1990, que foi uma espécie de expansão do que consideramos ser um bom pai ou mãe – e, mais especificamente, uma boa mãe, certo?
As mães estavam trabalhando em tempo integral e ainda cumprindo com uma parte esmagadora dos afazeres domésticos. Mas não é só isso.
Nas minhas pesquisas, as mulheres de hoje em dia estão fazendo mais ou menos a mesma parcela de tarefas domésticas que as suas bisavós faziam no início do século 20.
O caso é que a sociedade, de alguma forma, considerava que nós não seríamos boas mães se não passássemos uma enorme parcela do nosso tempo com nossos filhos, sempre correndo nos fins de semana para levá-los a eventos.
E, de alguma forma, talvez particularmente se você fosse uma mãe que trabalha, a culpa meio que explodia.
Eu sinto que as telas – e vi isso com meus próprios filhos – simplesmente se tornaram uma forma de alívio para os pais, e as mães em particular, de quem a sociedade simplesmente pedia algo que era impossível.
Haidt: Cada palavra que você disse é verdade. Vou apenas tentar acrescentar algo.
Este é um quebra-cabeça.
E tenho um gráfico muito bizarro no livro, que mostra que a quantidade de tempo que as mães e os pais passam com seus filhos permaneceu razoavelmente estável nos anos 1980 e até nos anos 1990. E, de repente, em meados dos anos 1990, ela disparou, pelo menos nos Estados Unidos.
Algo mudou nos anos 1990. E foi este padrão que você comentou.
Kay: Ótimo, eu me mudei para os Estados Unidos em 1996, logo cheguei no momento exato! [risos]
Haidt: Agora, você chegou lá! É isso mesmo!
Isso realmente aconteceu. As mulheres, hoje em dia, têm menos filhos que suas avós, trabalham fora de casa, ao contrário das suas avós, e passam mais tempo com seus filhos.
Ou seja, grande parte disso ficou com as mulheres. Mas por que isso aconteceu?
A melhor resposta vem deste livro realmente maravilhoso chamado Paranoid Parenting [“Criação de filhos paranoica”, em tradução livre], de Frank Furedi.
Ele é um sociólogo britânico e se concentra no que aconteceu no Reino Unido, não nos EUA. Mas ele indica que o mesmo ocorreu nos Estados Unidos e no Canadá.
E o que aconteceu, segundo ele, é que nós perdemos a confiança nas outras pessoas. E, quando isso aconteceu, deixamos de confiar nos nossos vizinhos. E não confiamos nas pessoas para quem encaminhamos nossos filhos.
Criar filhos sempre foi meio que um projeto coletivo. Quando você perde isso, fica cada família por si. E isso significa que são principalmente as mães que ficam sozinhas.
Kay: Dentro do seu tipo de meta-análise das telas, crianças e escolas e se podemos ou não ter celulares nas escolas, nós realmente precisamos abordar estas questões antes de podermos, de fato, livrar nossos filhos dessa dependência das telas?
Haidt: Precisamos entender estas questões em primeiro lugar, se quisermos compreender tudo o que acontece historicamente.
Mas eu não diria que precisamos lidar com estas questões primeiro porque, francamente, nós não vamos enfrentá-las. Falo em reverter o declínio da comunidade.
Sabe, eu compareço a todo tipo de reuniões sobre isso. Existem todos os tipos de fundações, Veja, a tecnologia muda a sociedade…
Kay: Você poderia simplesmente consertar tudo, Jon? [risos] Quero dizer, sei o que você fez sobre os celulares nas escolas, mas, de verdade, intensificar isso?
Haidt: [risos] Sim. Vamos consertar a comunidade em seguida!
Não, nós não vamos restaurar nossa confiança nos vizinhos para podermos deixar nossos filhos saírem de casa. Isso não vai acontecer.
Na verdade, provavelmente iremos piorar muito com a era da inteligência artificial, quando não teremos ideia do que é verdade. Nós não iremos saber novamente o que é verdade por muito tempo. Talvez nunca mais saibamos.
Precisamos nos adaptar a isso. E acho que a forma de nos adaptarmos a esta ofensiva da tecnologia é dizer “OK, sabe? As crianças não são adultos.”
Precisamos nos concentrar no que será necessário para permitir que as crianças desenvolvam seus cérebros de forma saudável ao longo da puberdade. Esta é a minha missão.
Precisamos oferecer às crianças menos tempo de tela. Tempo muito menos fragmentado.
Sem TikTok. Sem vídeos curtos. Este é o pior – e dar a eles muito mais experiência, interagindo com as pessoas.
Kay: O que você diria para as famílias mais pobres, onde os dois pais precisam trabalhar em diversos empregos e para quem a invenção do conteúdo em telas que deixa seus filhos pequenos ocupados é literalmente uma corda de salvação? Existe ou não um argumento diferente para elas?
Haidt: Sim, existe. A forma de compreender isso é que, nos anos 1990, quando todos nós éramos tecno-otimistas, a internet era incrível.
A internet, inicialmente, era incrível. Mas as crianças ricas tinham computadores e acesso à internet e os pobres não tinham.
Nos anos 1990, tínhamos algo de bom, sabe? Era a igualdade educacional.
Bill Gates e todos os tipos de filantropos doaram centenas de milhões de dólares. “Vamos fazer com que todas as crianças tenham computadores.”
Por isso, no início dos anos 2000, todos nós éramos tecno-otimistas e pensávamos: “Muito bem, eu não tenho confiança de que meu filho ande três quarteirões até uma loja, mas ele está em um computador? O que poderá acontecer? Ele está aprendendo! Isso é ótimo!”
Nós achamos bom que os nossos filhos ficassem no andar de cima, com um computador. E, é claro, esta é uma das ideias centrais da série Adolescência, da Netflix, como você sabe.
Os pais pensam que seus filhos estão seguros quando estão em um computador. E, nos anos 1990, a maioria deles estava. Havia também algumas coisas ruins, mas a maioria deles estava.
Mas, quando a internet é dominada, ou pelo menos a infância é dominada por três ou quatro grandes empresas – TikTok, Snap, Meta e Google – que usam algoritmos para enviar conteúdo para elas, para mantê-las conectadas, tudo fica muito mais sombrio.
Agora, as crianças nos computadores não estão aprendendo a programar. Elas não estão aprendendo nenhum conhecimento útil.
Elas estão simplesmente deitadas ali, consumindo conteúdo. É quando tudo fica muito doentio e muito sombrio. Mas nós não percebemos.
Por isso, o que aconteceu agora é que a questão da igualdade educacional se inverteu.
Costumava ser “conseguir computadores para as crianças pobres”. Mas, nos anos 2000, ficou claro que os ricos, especialmente as pessoas do Vale do Silício, não deixam seus filhos terem acesso a este tipo de coisas.
Por isso, agora, o grande imperativo da igualdade educacional é que precisamos oferecer às crianças pobres a mesma proteção que têm os ricos. Precisamos fazer com que elas fiquem menos tempo nas telas.
Você disse que elas são literalmente uma corda de salvação. Eu diria que não, elas não são literalmente uma corda de salvação. Elas são literalmente um deturpador de mentes.
Kay: Muito do que você escreve e a forma como você escreve é dirigida aos adultos.
Se você fosse às escolas e conversasse com os alunos do ensino médio, qual seria o argumento mais eficaz que você poderia apresentar para eles?
Haidt: Fico feliz por você ter feito esta pergunta porque, pouco antes da entrevista, eu estava em uma conversa de uma hora com a minha equipe.
Estamos criando uma versão de A Geração Ansiosa para crianças de 8 a 12 anos de idade, que ainda não têm smartphone.
O ponto principal que queremos transmitir é que existem empresas que querem fisgar vocês. E eles já fisgaram a maior parte das crianças.
Se vocês olharem para as crianças mais velhas, elas não estão se divertindo. Elas estão sozinhas, estão tristes.
Porque todas elas foram sugadas para se tornarem apenas consumidores de conteúdo e isso é tudo o que eles fazem.
Você quer ter uma vida incrível e emocionante? Você quer fazer coisas? Quer se divertir com seus amigos?
Então não siga este caminho. Não deixe que essas empresas enganem e fisguem você.
Uma das principais ideias de A Geração Ansiosa é que este não é um livro sobre telas. É um livro sobre a infância.
Que tipo de infância queremos para os nossos filhos?
Nota dos editores:
O TikTok declarou à repórter da BBC Marianna Spring que mantém configurações de segurança “líderes no setor” para os adolescentes. E A Meta (proprietária do Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads) menciona suas próprias ferramentas para oferecer “experiências positivas e apropriadas para cada idade”.
Conheça mais sobre as medidas tomadas pelas empresas de redes sociais em relação à segurança das crianças online neste link.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.
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